“Mãe Bia tá certa: cabe ao povo de
fé arrebanhar as ovelhas perdidas pelos caminhos da vida...”
por Tatiana Tiburcio
O
segundo capítulo de SUBURBIA começa com a seqüencia da tentativa de estupro
sofrida por Conceição. Muito se falou a respeito dessa situação quando apontada
ainda no primeiro episódio. Algumas pessoas reclamaram dizendo “lá vem a mesma
história de novo do homem branco abusando da negona”. Ah como é doce a espera!
Para provar que esse produto tem um quê de diferente de tantos outros escritos
e produzidos pelos negrólogos de
plantão: aqui nós como negros fomos ouvidos. Não dá pra evitar exibir essa
situação, pois ela é corriqueira à grande maioria das mulheres negras nesse
país em algum grau. E sabemos bem o peso dessa verdade. Pode se argumentar que
não é uma situação inerente somente a mulher negra. Que ocorre com a mulher de
um modo geral. No entanto, é provado que a grande maioria dos estupros no
Brasil são sofridos por mulheres de melanina
acentuada. E isso se dá pelo fato de sempre termos sido vistas como um objeto
sexual de uso institucionalizado pela história, que só deixou de ser assim no
papel, mas no inconsciente social continua igual. As escravizadas negras eram
abusadas sob o direito dos homens/senhores de assim fazê-lo. Era normal. Como
em “Casa Grande e Senzala” quando o autor tenta nos fazer acreditar que essa
iniciação sexual do sinhozinho, por exemplo, era uma coisa quase romântica e
tida com bons olhos por todos. Consensual. Mentira! A escravizada não tinha o
direito de dizer não! Como mostra a cena do abuso de Conceição. Quando a mesma
se nega o sinhô contemporâneo a
expulsa de casa (já que não pode chicoteá-la ou forçá-la pela lei). E a Vera
sabe que ela não pode contar pra patroa porque esta acreditará no sinhô, visto
que é lógico que foi a negra que provocou, porque assim somos vistas. E o
silêncio daquelas mulheres revela a compreensão embutida da falta de defesa e
de igualdade de direitos e sentimentos.
O
diferencial aqui é o desenrolar dessa situação. A REAÇÃO. Hoje podemos dizer
NÃO! Vestidas misticamente com a força e as armas de Iansã reagimos no nosso cotidiano,
no matar o leão nosso de cada dia. Conceição reagiu a partir da mesma energia
que a fortaleceu no internato quando agredida pela menina manda chuva do pedaço.
A energia canalizada em força gerada pelo fato de saber quem é e de onde
vem mostrando a importância de conhecer suas raízes. A força ancestral
dos nossos bakulos e inkices presentes no olhar focado e no joelho certeiro
dessa menina que não tem nada, mas que tem tudo naqueles que a antecedem
e que a fazem ser quem é. A força de nossas raízes que nos foi tirada quando
capturados, separados e divididos durante quase quatro séculos; a força de
nossas raízes que foi queimada por Rui Barbosa junto com todos os registros de
origem dos nossos antepassados escravizados, mas que se mantém vivo ressurgindo
desse mesmo fogo de Xango através do amor, da oralidade, da fé.
Essa
é a palavra! Fé. E não estamos aqui falando da fé cristã (nem que haja um
problema com a fé cristã), mas da fé do amor. Um amor que abraça que acolhe que
aquece que multiplica e que se faz vivo nos pequenos gestos do viver nosso de
cada dia. Esse amor feminino no qual é banhado, por
exemplo, esse homem negro criado nitidamente não com o olhar de quem pode ter
tudo o que quer (Seu Cássio/Sinhô), mas de quem quer tudo o que lhe convém, Seu
Aloyzio. Esse homem forjado nesse amor feminino que une por um fio singelo que é desenrolado delicadamente
e abraça toda essa família de Mãe Bia às crianças brincando no quintal. Seu
Aloyzio que com essa música sincrética – porque vai de Mozart ao Jongo – embala
e protege com seu fio tênue, porém inquestionável essa união de amor. Um amor
negro porque plural, comunitário, de crescimento para os lados e para cima
remetendo a um movimento espiralar que é justamente a forma figurativa de
desenvolvimento humano da visão de mundo Banto. Um amor calçado em valores
antigos carregados de referências ancestrais que muitos de nós nem sabemos de
onde vem, mas que reproduzimos porque sentimos no sangue, na pele. Como quando
Vera desrespeita o pai no portão de casa e ao ser chamada atenção pela mãe
esquece sua doutrina atual e se desculpa com seus valores ancestrais: “ Bença
mãe”. Na certeza intuitiva de que é esse subjetivo que nos mantém vivos. Que acalenta e dá sentido
a vida de Cleiton, que sincretiza as crenças, que abençoa e batiza nas águas da
mãe primeira o amor dos enamorados com a permissão da família. Que explicita a
cumplicidade de cada olhar feminino, negro (de Amelinha, Maria Rosa, Vera e Mãe
Bia) consciente – cada um(a) a sua maneira – da dor vivida por Conceição quando
pede abrigo nesta casa. A fé do amor! Que fez com que ela não buscasse a
justiça dos homens (brancos) que olhariam para esse corpo escultural de deusa
negra e diriam algo do tipo “também né, com essa bunda qué o quê?” ou coisa do
tipo. E sei do que estou falando.
Ela foi buscar a justiça desse amor que nos seus pares se fortalece.
Ela foi buscar a justiça desse amor que nos seus pares se fortalece.
“Cabe
ao povo de fé arrebanhar as ovelhas perdidas pelos caminhos da vida”
Luiz
Fernando Carvalho e Paulo Lins
8 comentários:
Tati, coisas que me encantaram: esse momento em que todas as mulheres se solidarizam de forma tão encarnada nelas mesmas o ocorrido com Conceição e esse detalhe tão sutil e significativo de a Vera ter pedido a bênção, sobrepujando seus valores religiosos, em respeito à mãe e ao pai. A Fé que você diz, em olhares absolutamente carregados deste significado.
Estou adorando e pra terminar com humor:
Vera: "Macumbeiro pode tudo!"
Sr. Aloysio: "Graças a Deus!"
kkkkkkkkkkkkk
Lindo e tocante, acompanhando!!! =D
Beijos!!!
Poli
Parabéns por mais uma participação em uma produção que já é um sucesso!
Tá show Tati!
Tati, muito bons os textos do blog, na forma e no conteúdo. Creio que tão importante quanto a produção televisiva de Subúrbia é o material que é gerado a partir dela, com possibilidades de reflexão e aprofundamento. Parabéns pelo conjunto da obra.
Tatiana parabéns pelas sábias palavras colocadas de forma tão assertiva aqui neste blog e no encerramento do seminário. Tenho orgulho de você! Se tiver oportunidade para levar ao Luiz Fernando essa mensagem que reforça uma informação, que provavelmente ele tem, mas que a parir de SUBURBIA pudesse ser refletida nas suas próximas produções.
A população negra no Brasil é de aproximadamente 51%, nos EUA 13%. Apenas observando as produções audiovisuais e a publicidade desses dois países vemos o quanto o Brasil precisa avançar pela igualdade. Oxalá SUBURBIA seja um ponto de partida para nos sentirmos mais pertencidos e representados por esses veículos de comunicação de massa em nosso país.
Pergunta: Porque hoje temos sempre que explicar a nossos amigos estrangeiros que não somos um país caucasiano?
Resposta: Por que é esta a impressão que eles têm quando assistem a TV brasileira!
Será uma grande vitória se a partir de SUBRUBIA o Luiz Fernando Carvalho, que teve esta louvável e importante iniciativa, seja o primeiro diretor a reproduzir de forma fiel, em seus futuros elencos, a representatividade quantitativa do nosso povo. Aí sim, nossos colegas atores e atrizes terão igualdade de condições de trabalho neste segmento, aliás, 51%. Meu desejo é que esta atitude dele sirva de exemplo para outros! Que SUBURBIA quebre paradigmas.
Mais uma vez parabéns menina, mulher guerreira, inteligente, brilhante representante da população negra, competente e consciente dessa luta, que infelizmente, ainda está longe de acabar... Mas com a atitude de pessoas como nós, conscientes dela, agentes de transformação imprescindíveis para encurtar esse caminho.
Um grande beijo da Lene.
Oi Tati!
Fico feliz por vc estar em uma produção de tanta qualidade, coisa não tão comum em
produções para a tv aberta. Apesar de usar como 'fio condutor' uma história de amor
expõe a rica diversidade da nossa sociedade.
Que este trabalho seja o ponto de partida para uma longa e feliz carreira!
Tudo de melhor pra vc, hoje e sempre!
Bjs
Geovana
Boa tarde! Estou observando ainda, gosto muito da serie, porém acho que precisamos de algo diferente que nos remeta o presente. Pois hoje somos mulheres que freqüentamos faculdade, que denunciamos marido, que sai em busca de bons empregos etc.
Acho que estamos na fase de ver novos exemplos para que aumente a auto - estima do nosso povo. Queremos dar esta virada, quem sabe na próxima serie algo deste jeito!
Minha mãe mesmo agora que eu única mulher e pessoa da família inteira a se forma numa universidade federal. Em função deste incentivo, minha mãe voltou a estudar com 53 anos e agora com 56, terminou o segundo grau! Precisamos de incentivo, ver que, todos nós somos capazes, é isso que faz com que as universidades fiquem cheias de pigmentações, quanto mais tem mais aparece à procura! Vamos pensar nisso, a televisão tem este poder de formar opinião então vamos fazer isso de uma forma mais positiva, mesmo que a realidade ainda não seja esta! bjs Flavia Souza.
Outra observação
Para uma menina da roça e tímida ela estava bem à-vontade no figurino de seu novo emprego, ainda é muito nítida a visão da mulher negra do corpo escultural que chama atenção sexual dos homens em geral, principalmente os homens brancos que na sua grande maioria pensam que somos objetos de desejo e prazer, e quando a Conceição não da confiança eles se acham no direito de tomar a força, como se ela não tivesse o direito de escolha e ele é a ótima opção.
Vamos ver o que acontece ao decorrer da serie. Estou gostando muito da apesar de continuar apostando em uma mudança de valores e espelhos para nosso povo ver uma janela diferente.
Flavia Souza.
Tudo neste aspecto ainda é meio que novo... A realidade da população afro do eixo oriental brasileiro (litoral), está sendo bem representada na série, porém sabemos que uma parte já está à frente do que está sendo representado e outra parte, senão a maioria se encontra aquém do representado... sendo assim temos que priorizar os bons exemplos para nossos jovens. na série até agora está tudo maravilhoso, e fica a dica para uma próxima desventura...
Postar um comentário